Reforma psiquiátrica e o “revogaço”

 

Com o avanço nas políticas de governos que possuem tendências explicitamente de direita, com características neoliberais e conservadoras, a partir do golpe de 2016, o cenário relativo às políticas de saúde mental se agravou e, em 2020, com todas as questões difíceis que estamos vivendo em relação à pandemia, no início do mês de dezembro houve uma temerosa proposta ao Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e ao Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasens).

Ela prevê, para a sua implementação, a necessidade de revogação de diversas portarias da saúde mental criadas entre 1991 e 2014, o que coloca em risco a própria existência dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), dos residenciais terapêuticos, das equipes de consultório na rua, do Programa de Volta para Casa e de toda a construção feita até aqui da Rede de Atenção Psicossocial nas políticas de saúde, cujas diretrizes estão disponíveis no site da Associação Brasileira de Psiquiatria.

Para esta reflexão, parto do pressuposto de que atenção à pessoa em crise pode ser um importante analisador da reforma psiquiátrica brasileira. Essa consideração vem, principalmente, do processo de pesquisa de mestrado, no qual descrevo a relação estabelecida com a pessoa em crise como um movimento pendular. Visualizei e situei que as práticas de cuidado se dariam no ponto de equilíbrio do pêndulo, que, assim como na Física, seria o ponto de maior instabilidade do movimento.

Evidencio um mosaico de possibilidades a partir do encontro entre os trabalhadores do CAPS, a pessoa em crise e suas relações. Esse mosaico de possibilidades seria intercessor entre o modelo asilar e o modelo psicossocial.

Representação do movimento pendular das práticas de cuidado à pessoa em crise. Elaborado pela autora, 2020

Para identificar e situar o movimento dessas relações de cuidado, será sempre necessário um aprofundamento, sendo o pêndulo apenas o movimento aparente no complexo das relações de cuidado, mas com potencialidade de ser uma ferramenta de apanhar sinais e auxiliar na identificação das tendências dos modelos asilar e psicossocial nas práticas de cuidado e nas próprias políticas de saúde mental a partir de uma análise de um campo de forças que atua nesse movimento.

Colocando isso em prática, pretendo disparar uma reflexão que evidencie o pressuposto de que as forças do modelo asilar da psiquiatria atuam no movimento das práticas de cuidado no campo psicossocial e encontram no contexto da pandemia de covid-19 e nos avanços da direita neoliberal terreno propício para potencializar sua força de atuação.

Uma dessas questões que tensionam os modelos de atenção se refere à Lei n.° 10.216, de 2001, que ao mesmo tempo que favoreceu a criação e a implantação do modelo de serviços substitutivos, prejudicou a proposta original que defendia o fim dos manicômios, sendo aprovada uma ambígua reorientação do modelo assistencial, como mostra em artigo Katita Figueiredo de Souza Barreto Jardim.

A segunda questão se refere à Portaria 336, de 2002, que atualizou a Portaria 224/1992. Nela, os NAPS passam a ser suprimidos da proposta e substituídos integralmente pelos CAPS, os Centros de Atenção Psicossocial. Segundo texto de Cristina Amélia Luzio e Silvio Yasui, essa mudança das siglas NAPS/CAPS apenas para CAPS produziu efeitos importantes nos rumos do modelo assistencial em saúde.

A portaria citada estabeleceu que os CAPS pudessem constituir-se nas modalidades de serviços CAPS I, II e III, definidos por ordem crescente de porte/complexidade e abrangência populacional (art.1), devendo estar capacitados para realizar prioritariamente o atendimento a pacientes com “transtornos mentais severos e persistentes” em sua área territorial, em regime de tratamento intensivo, semi-intensivo e não intensivo (art.1 §1.°), retirando o cuidado à pessoa em crise das modalidades de serviço de CAPS I e II, além disso, estabelecendo que os CAPS deveriam se constituir “serviço ambulatorial” de atenção diária, funcionando segundo a lógica do território (art.1 § 2.º).

Aliado a esse contexto, temos um terceiro aspecto, que se refere à forma de financiamento para os novos serviços de atenção em saúde mental, que, segundo Jardim, herdaram uma lógica produtivista praticada nos hospitais psiquiátricos que acarretava, inclusive, a extensão vitalícia de algumas internações. Sobre esse cenário, Da Silva aborda a conjuntura geradora de perdas para as políticas sociais, na qual se observam aberturas para o setor privado gerir os serviços de responsabilidade estatal com vistas à obtenção de lucros.

As disputas entre os modelos não pararam por aqui: em 2017, a nova portaria sobre a Política de Saúde Mental, da Comissão Intergestores Tripartite (CIT), determinou que hospitais psiquiátricos e comunidades terapêuticas passassem a fazer parte da Rede de Atenção Psicossocial.

A partir dessa breve contextualização, é possível perceber aspectos e elementos contraditórios que coexistem e atravessam as práticas de cuidado e as políticas de saúde mental. As disputas entre os modelos sempre estiveram em cena, como é possível analisar no documento sobre o estrangulamento financeiro dos hospitais de psiquiatria, elaborado em 2003.

Com pandemia de covid-19, principalmente devido às dificuldades impostas pelo distanciamento social e às medidas de segurança necessárias para a contenção do contágio do novo coronavírus, houve dificuldades na adaptação dos trabalhos territoriais, na manutenção dos grupos de suporte e no apoio nos CAPS, assim como nos atendimentos presenciais, sendo priorizadas neste momento as internações hospitalares com maior intensidade.

Faz-se importante olhar para os entendimentos de modelo assistencial que estão articulados com essa dinâmica: em 2010, pesquisadores já evidenciavam a tendência da atuação dos CAPS apenas como mais um componente da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), e não como o dispositivo ordenador do cuidado psicossocial. Segundo Souza, essa lógica operaria em um modelo de CAPS-satélites sem vida e impotentes, que gravitam seus processos de trabalho em torno da lógica hospitalar e do manicômio.

Com a pandemia de covid-19 e o potencial de utilização desse cenário de crise para a implementação de propostas que ferem o direito à saúde da população, temos em cena um momento bastante delicado da reforma psiquiátrica e da luta antimanicomial brasileira.

Estamos diante de uma difícil tarefa que exige de nós uma postura crítico-reflexiva e ativa para que possamos encontrar novas composições e tecituras para os desafios deste tempo e que permitam o cuidado territorial e em liberdade.

Que as memórias e as lutas dos que nos antecederam possam ser os guias do caminho que temos de seguir e que possamos juntos fortalecer e lutar pela permanência das práticas psicossociais que correm um alto risco de extinção e de serem garantidas nas políticas públicas. Vivemos um momento tenso, decisivo e reacionário que se evidencia numa correlação de forças com forte tendência a um retorno ao modelo asilar nos movimentos do cuidado e das políticas de saúde mental.

Franciele Savian Batistella é doutoranda do Programa de Pós-graduação em Enfermagem.

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