Decálogo do Meio-Termo
O que houve? Perguntam algumas pessoas.
Desde o início de março, muitos de nós propusemos indiretamente (por intermédio do Conselho Estadual de Saúde) algumas estratégias, medidas e atitudes para o “Gabinete de crise” instalado pelo governo gaúcho. Dentre o que foi proposto, o que foi efetivado ao longo do referido período?
1) Sem reivindicar exclusividade ou verticalidade da “autoridade sanitária” em uma situação complexa de crise, insistimos na necessidade de intermediações com a coordenação proativa do setor público e governamental de Saúde.
– O que foi efetivado ao longo desse tempo decorrido? Na maior parte das instâncias decisórias para a condução da atual crise no estado e municípios, o setor público e governamental de Saúde têm participado de forma subsidiária e sem protagonismo. Um exemplo proeminente refere-se ao processo de formulação e adoção do “modelo de “distanciamentpo controlado” adotado pelo governo estadual, cujo protagonismo deveu-se principalmente à “Secretaria de Planejamento, Orçamento e Gestão”.
2) Propusemos a adoção de estratégias para a reconversão industrial emergencial, induzida ou determinada pelo governo,para incrementar a produção intensiva de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) e de descontaminação para os trabalhadores da Saúde… Se tecnologicamente possível, também para a produção de peças e/ou equipamentos de suporte vital.
– O que foi efetivado ao longo desse tempo decorrido? Quase nada, não houve a adoção de estratégias proativas correlatas, ocorrendo poucas medidas isoladas principalmente da parte de governos municipais (EPIs).
3) Propusemos a aquisição e o incremento de testagens sorológicas para os trabalhadores de Saúde e para o rastreamento de contatos dos casos confirmados.
– O que foi efetivado ao longo desse tempo decorrido? Houve aquisições de testes pelo governo estadual e alguns governos municipais, porém, ainda em quantidade insuficiente.
4) Propusemos a regulação única pelo SUS da acessibilidade a todos os leitos de assistência especializada para as complicações da Covid-19, públicos e privados (complementares e suplementares). Com regulamentação prévia sobre as formas de compensação ao setor privado (Não SUS) e a garantia de acessibilidade para todos os casos a partir de critérios de gravidade.
– O que foi efetivado ao longo desse tempo decorrido? Nada, prevalecem regulações dissociadas entre os setores público e privado. Por exemplo, quem trabalha hoje nas sobrecarregadas Unidades de Pronto Atendimento de Porto Alegre pode atestar as dificuldades para realizar e regular referenciamentos hospitalares, inclusive para o setor privado complementar ao SUS (contratado ou conveniado)
5) Propusemos o preparo e disponibilização de recursos e equipamentos extras para a eventualidade de sobrecarga de serviços (p. ex. “hospitais de campanha, leitos de reabilitação etc.).
– O que foi efetivado ao longo desse tempo decorrido? Muito pouco, houve somente a habilitação de novos leitos de UTI (que mais serviram para impedir a adoção de medidas de maior rigor para o “distanciamento controlado” nas regiões)
6) Propusemos o preparo e a implementação de estratégias institucionais para o apoio, o suporte e a reposição de trabalhadores de Saúde, expostos aos riscos de contágios e sobrecarregados também pelo excesso de trabalho e condições de estresse.
– O que foi efetivado ao longo desse tempo decorrido? Quase nenhuma iniciativa governamental, sequer tem havido o monitoramento adequado de tal situação particular.
7) Dada a insuficiência de testes e a constatação acerca de significativas subnotificações e não notificações da Covid, propusemos a inclusão do monitoramento de eventos-sentinelas (que podem ser associados indiretamente à pandemia, p. ex. óbitos por complicações respiratórias, óbitos domiciliares) e a análise prospectiva de tendências de curto prazo, visando antecipar medidas de rigor para o “distanciamento social”.
– O que foi efetivado ao longo desse tempo decorrido? Limitou-se ao monitoramento de alguns eventos críticos (casos e óbitos com diagnóstico confirmado, taxas de ocupação de leitos de UTI etc.) para regular o rigor protocolar das medidas de “distanciamento controlado” nas regiões do estado.
8) Propusemos a intensificação de propagandas governamentais visando incrementar o convencimento e a adesão voluntária para as estratégias sociais mitigadoras (semiconfinamento voluntário, impedimento de aglomerações, diminuição de mobilidade etc). Principalmente porque em médio prazo havia a tendência de “relaxamento” por parte de contingentes populacionais (paradoxo do adiamento do “pico” epidêmico).
– O que foi efetivado ao longo desse tempo decorrido? Houve ênfase na divulgação da estratégia governamental de “distanciamento controlado” baseado no monitoramento quase exclusivo da ocupação de leitos de UTI. Campanhas midiáticas genéricas têm sido realizadas, porém, sem a particularização de perfis.
9) Propusemos o reforço e o incremento de recursos e de estratégias inovadoras para o apoio de equipes e de serviços de Atenção Primária à Saúde (APS), como também, de Assistência Social (SUAS).
– O que foi efetivado ao longo desse tempo decorrido? Quase nenhuma iniciativa substancial. No caso particular de Porto Alegre, o prefeito operou de modo inverso, adotando medidas para desmontar e dificultar o trabalho de equipes da APS vinculadas ao IMESF.
10) Por fim, considerando a grande proporção remanescente de susceptíveis e o alongamento do período de transmissibilidade, que tornou imprescindível a adoção de estratégias para a regulação do rigor das medidas de “distanciamento social” em médio e longo prazo, enfatizamos que não era prudente e nem justificável a “flexibilização”, mesmo que regulada, das medidas restritivas de “distanciamento social” em uma fase de progressividade intensiva de contágios, de casos e, consequentemente, de complicações.
– O que foi efetivado ao longo desse tempo decorrido? A flexibilização insuficientemente regulada das medidas de “distanciamento controlado”, principalmente em razão da pressão política exercida pelo setor econômico empresarial. A pressão econômica pelo retorno a uma “normalidade” socioeconômica, amparada na “naturalização” das mortes evitáveios, em termos de “indiferença sistêmica” e até mesmo de necropolítica.
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Enfim, alguém pode ponderar: o “meio-termo” efetivado é preferível ao “terraplanismo negacionista” e ao genocídio bolsonariano… De certo, mas está aquém do que poderia e deveria ter sido feito.
Alcides Miranda, médico, especialista em Saúde Coletiva, professor universitário