EXISTEM DÚVIDAS SOBRE A NECESSIDADE DE REALIZAÇÃO DE EPISIOTOMIAS?

Autoras:

Profª Drª Mariene Jaeger Riffel

Profª Drª Virginia Leismann Moretto

 

 

Desde 2010 a Folha de São Paulo vem publicando matérias em que a episiotomia é abordada. No entanto, percebe-se que a população e profissionais da saúde são pouco informados sobre esta prática e suas complicações. Muito menos sobre a história de como sua prática nociva e controversa chegou até os dias atuais e de como as mulheres se posicionaram ao longo deste período. 

Em novembro de 2021, a Folha de São Paulo (MISSIONEIRO, 2021) informou que, nos últimos dois anos, a maternidade ligada à Universidade Federal de Pelotas (RS) reduziu pela metade os cortes vaginais realizados no parto e que o motivo propulsor desta redução foi a contratação e o trabalho de enfermeiras obstetras, bem como a nova geração de médicos que estão promovendo a redução da prática da episiotomia. 

A episiotomia é o corte no períneo, na região entre a vagina e o ânus. Ela pode seguir uma linha reta entre estes dois órgãos ou seguir lateralmente da vagina em direção à nádega, tanto à direita quanto à esquerda.

Esta maternidade integra o grupo de outras oito instituições de ensino do Rio Grande do Sul que, no Brasil somam 96 instituições de ensino superior. Estas instituições compõem o coletivo de hospitais estratégicos para operar mudanças necessárias ao modelo de atenção centrado na gestação, enquanto condição de saúde e não de doença, defeito ou incapacidade feminina a ser corrigida no nascimento. 

O acompanhamento de mulheres durante o parto e nascimento é algo a ser reaprendido. Neste sentido, o Ministério da Saúde lançou, em 2017,  o Projeto de Aprimoramento e Inovação do Ensino – APICE-ON, com a intenção de qualificar  processos de atenção, gestão e formação para o parto, nascimento e abortamento nos hospitais de ensino.  O resultado foi a qualificação de cerca de mil participantes, entre gestores e profissionais de saúde apoiados por mediadores e supervisores contratados para tal em oficinas de planejamento, monitoramento e avaliação, compartilhando experiências, reavaliando estratégias e revisando planos de ação. Neste cenário todos os profissionais passam por uma formação obstétrica que tem reconhecimento internacional, baseada nas atuais evidências científicas, incluindo as melhores práticas e abolindo as não recomendadas. No entanto, muito ainda precisa ser feito para melhorar as condições da atenção ao parto e nascimento em todo o Brasil.

A episiotomia tornou-se uma prática rotineira nos partos de todas as mulheres, a ponto de só não ser realizada quando o bebê nascia antes de a mulher chegar a um ambiente hospitalar. E, se por algum motivo o bebê nascesse sem que a episiotomia fosse realizada, algumas mulheres sentiam-se prejudicadas, como se tivessem perdido algum benefício ou sofressem algum mau atendimento.

Foi neste cenário de naturalização da episiotomia que um grupo de pesquisadores do mundo todo, há mais de 50 anos, vem estudando cada prática utilizada nos nascimentos. Destes estudos resultaram publicações que categorizaram as práticas conforme sua segurança e de forma que fossem disponíveis à todas as mulheres. Entre as que deveriam ser restritas ou até mesmo abolidas estão a episiotomia, o Kristeller, a lavagem intestinal, a raspagem dos pelos pubianos e o jejum durante o trabalho de parto.

A técnica da episiotomia foi proposta pelo obstetra irlandês Fielding Ould, em 1742, em seu livro Treatise of Midwifery, com o objetivo de facilitar partos difíceis, e tornou-se popular nos Estados Unidos (EUA) a partir dos anos 1920. Na época, acreditava-se que o procedimento poupava tanto a mãe de uma lesão perineal maior, quanto o bebê do sofrimento. 

Contudo, entre as décadas de 1970 e 1980, alguns grupos começaram a questionar o procedimento, visto que os efeitos propagados não se concretizaram.  Ao invés de poupar a mãe, a incisão e sua cicatriz ou a técnica malfeita se tornava, e continua se tornando, uma lesão dolorosa, difícil de cicatrizar; algumas vezes lesava o crânio do bebê, não promovendo a proteção pretendida. A reavaliação da episiotomia como prática rotineira contou com o artigo de Thacker e Banta (1983), que revisaram a literatura, de 1860 até 1980, sobre os benefícios da episiotomia, abrangendo mais de 350 artigos e livros concluindo que não há evidencias suficientes para sua recomendação.

A episiotomia não foi realizada sempre conforme a técnica conhecida atualmente. No século XVIII, era recomendada uma incisão perineal da vagina ao ânus, somente nas mulheres que tivessem um parto difícil. Foi no século XIX, em 1820, que a prática foi recomendada como rotina e publicada por Adam Siebols num periódico obstétrico influente à época chamado “Lucina”, como segura proteção contra o rompimento do períneo e órgãos subjacentes em todos os partos onde pudesse ocorrer rupturas (DAVID, 1993). 

Mas a incisão não era suturada; a história nos informa que não existiam fios cirúrgicos da forma como os conhecemos hoje. A ferida provocada pela episiotomia era tratada por meio de limpeza da região com infusão de camomila em seringa para a retirada da urina, e restrição dos movimentos da mulher por meio da compressão de suas coxas, uma na outra, durante semanas. Estes cuidados não evitavam a dor e a infecção, o que por si só não a tornava segura conforme indicado.

Até meados do século XIX a maior parte dos nascimentos era atendida por parteiras que, devido a sua experiência, consideravam a episiotomia uma prática duvidosa e não a utilizavam, mesmo quando havia a possibilidade de rotura do períneo. 

Em 1820, ano em que a prática foi difundida nos EUA, 47 manobras de proteção do períneo foram publicadas no livro didático “Sobre auxílio a partos”, entre as quais a incisão perineal. Nesta ocasião ao invés de uma única incisão foram recomendados múltiplos cortes superficiais na vagina (escarificação) (DAVID, 1993). Em pouco tempo esta prática, evidentemente violenta e pouco ética em relação às mulheres, foi abandonada. A partir de então foram recomendadas duas incisões laterais, pois a cicatrização seria melhor e mais rápida se houvesse dois cortes superficiais a um mais profundo (DAVID, 1993), ou seja, mais uma experiência abusiva e violenta. 

E a anestesia?  Bem… a anestesia local começou a ser mais estudada em 1860 e usada pela primeira vez em cirurgia de olho em 1884. Seu desenvolvimento e uso amplo, como em episiotomias se deram a partir de 1943, portanto a menos de um século (CARVALHO, 1994). No entanto, como enfermeira de sala de parto pode-se observar a realização de episiotomias sem o uso de anestésicos locais até o final da década de 1990. A justificativa para isso era de que a pressão do crânio do bebê sobre o assoalho pélvico comprimiria a inervação da região impedindo a dor. Lamentavelmente todas as mulheres observadas nesta situação apresentaram dor durante a realização e também durante a sutura da ferida.

 Os artigos que revisaram aspectos da episiotomia,  produzidos entre 1990 e 2005, orientavam-se, predominantemente, pelo enfoque biologicista, característica dos estudos da época. A maior parte destes artigos foi produzida por homens, médicos, refletindo a visão política dos programas voltados à saúde da mulher que a definiam como ser da reprodução, feita para o lar e para os filhos (BENTO; SANTOS, 2006).

Em publicação de 2018, a OMS reafirma, em sua recomendação 39, que o uso  ampliado ou rotineiro da episiotomia no parto vaginal espontâneo não deve ser realizada. Para decidir sobre o uso de uma episiotomia seletiva a OMS propõe o seguinte questionamento: o uso melhoraria o resultado do parto? Esta pergunta deveria seria ser respondida levando-se em consideração os seguintes parâmetros:  a duração do trabalho de parto; a morbidade materna; a morbidade materna a longo prazo; traumatismo perineal/vaginal; uso de alívio da dor; experiência materna do parto; traumatismo do parto; hipoxia-isquemia perinatal.  

A boa recuperação pós-parto reflete a consolidação de um parto vaginal mais humanizado e bem assistido, corroborando com os programas governamentais do Brasil que, nos últimos 20 anos inclui a enfermeira obstetra como elemento que qualifica a assistência materno-infantil.

Nas instituições onde a enfermeira obstetra está presente no acompanhamento do parto, as taxas de episiotomia decrescem rapidamente e as mulheres sentem-se mais seguras e satisfeitas, como no caso da maternidade do Hospital Escola da UFPel (Universidade Federal de Pelotas) que conseguiu reduzir pela metade o índice de episiotomia em dois anos. Mas, no Brasil a taxa média de realização é de 56% dos partos vaginais chegando a 75*% em primíparas e apenas alguns centros de referência de parto exibem taxas menores (LEAL, 2014). Equipe de pesquisadores da Fiocruz afirma que em partos assistidos por enfermeiras o preenchimento do partograma foi mais frequente e a chance de litotomia e episiotomia foi menor; que “a inserção da enfermeira na assistência ao parto vaginal tem se mostrado bem sucedida, trazendo às mulheres um parto mais fisiológico e respeitoso” (LEAL, 2019). Entretanto, a participação da enfermagem na assistência ao parto ainda é pequena. Mesmo com um aumento expressivo da atuação da enfermeira obstetra no setor público, sua presença foi registrada em apenas 27% dos partos vaginais, sendo quase inexistente no setor privado (LEAL, 2019).

Na maternidade, cuja reportagem nos instigou a escrita deste artigo, existem entraves na relação entre médicos e enfermeiras cabendo a estas o cuidado às mulheres durante o trabalho de parto e, ao médico, a assistência no período expulsivo. Sabe-se que nesta maternidade o número de enfermeiras obstétricas é insuficiente para que se dê uma assistência completa à mulher desde sua internação até a saída da maternidade.

Daí poder dizer que modificar algo aceito ou desconhecido, como a episiotomia, implica uma série de decisões e consequências. Ao produzir-se uma decisão administrativa, ocorre uma reação política que se caracteriza pelo “apoio ou rechaço de grupos sociais interessados ou afetados pelo problema” (TESTA,1992, p. 125) o que nos remete à seguinte pergunta: a quem interessa o uso rotineiro e ampliado da episiotomia? A partir de respostas a este questionamento poderão ser criadas reações políticas que manifestem a eficácia da prática em questão.

 

 

REFERÊNCIAS

BENTO, Paulo Alexandre de Souza São. SANTOS. Rosângela da Silva Santos. Realização da episiotomia nos dias atuais à luz da produção científica: uma revisão. 2006. Disponível em: DOI: 10.1590 / S1414-81452006000300027. Acesso em 14 jan. 2022.

CARVALHO, Cynthia Coelho Medeiros de; SOUZA, Alex Sandro Rolland; Filho, Olímpio Barbosa Moraes. Episiotomia seletiva: avanços baseados em evidências. 2010. Femina;38(5), maio de 2010. Disponível em: http://files.bvs.br/upload/S/0100-7254/2010/v38n5/a008.pdf. Acesso em: 10 jan. 2022.

CARVALHO, José Carlos Almeida. Farmacologia dos Anestésicos Locais. Revista Brasileira de Anestesiologia. v.44, n.1, p. 75-82, 1994. Disponível em: https://www.bjan-sba.org/article/5e498bc70aec5119028b47c7/pdf/rba-44-1-75.pdf Acesso em: 17 jan. 2022.

DAVID, M. Wer erfand den dammschnitt? Zur geschichte der episiotomie. Zentralbl gynakol. Leipzig, v.115, n.4, 188-193, 1993.

LEAL, Maria do Carmo et al. Avanços na assistência ao parto no Brasil: resultados preliminares de dois estudos avaliativos. Cad. Saúde Pública. 2019; 35(7):e00223018. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00223018. Acesso em: 15 jan. 2022.

LEAL, Maria do Carmo et al. Intervenções obstétricas durante o trabalho de parto e parto em mulheres brasileiras de risco habitual. Cad. Saúde Pública 30 (Supl 1) • Ago 2014. Disponível em:  •https://doi.org/10.1590/0102-311X00151513. Acesso em: 16 jan. 2022.

MISSIONEIRO, Cláudia Collucci Mathilde. Em 2 anos, maternidade de Pelotas (RS) reduz pela metade cortes vaginais no parto: Chegada de enfermeiras obstétricas e de nova geração de médicos impulsionou mudanças. Disponível em:  https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2021/11/em-2-anos-maternidade-de-pelotas-rs-reduz-pela-metade-cortes-vaginais-no-parto.shtml. Folha de São Paulo. 29 nov. 2021. Acesso em: 15 jan. 2022.

TESTA, Mario et al. Pensar em saúde. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992.

Thacker SB, Banta HD. Benefícios e riscos da episiotomia: uma revisão interpretativa da literatura em língua inglesa, 1860-1980. Benefits and risks of episiotomy: an interpretative review of the English language literature, 1860-1980. Obstet Gynecol Surv. 1983 Jun;38(6):322-38. PMID: 6346168. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/6346168/. Acesso em: 15 jan. 2022.

WHO. World Health Organzation. WHO recommendations Intrapartum care for a positive childbirth experience. 2018. Disponível em: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/260178/9789241550215-eng.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 15 jan. 2022.

 

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